Reproduzimos a seguir um artigo de Nélida Piñon, uma das maiores escritoras
brasileiras e a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras.
Ela fala do bacalhau com a arte de quem domina as letras e a culinária.
Aprecie, é pura literatura e prazer.
Gosto de bacalhau seco, compacto. Sempre esqueço que é um peixe que singrou outrora os mares até cair nas malhas e na ganância dos pescadores. Presente raro dos deuses, o bacalhau, para mim, nasceu simplesmente salgado, sempre em postas e, neste estado, graças ao engenho humano, é levado à mesa e entregue à sanha de nossa gula. Desde menina, presença constante em minha casa, o bacalhau ajustava-se, como nenhum outro alimento, à fantasia familiar. Talvez porque pudesse ser preparado de mil maneiras, embora o feitio mais tradicional fosse afogá-lo no azeite e no alho. O bacalhau, aliás, por prestar-se a tantas receitas, assemelha-se aos quatrocentos queijos franceses, que motivaram o presidente De Gaulle a declarar a ingovernabilidade de um país que criou do mesmo produto tantos sabores. Os portugueses, por sinal, donos de estômagos aguerridos, e apreciadores de alimentos contundentes, também não são facilmente governáveis. O que nos parece bem acertado. O bacalhau, porém, de que lhes falo, apresenta-se em casa fagueiro especialmente na noite de Natal. Quando nos apraz que a travessa de bacalhau, ao aterrisar na mesa ornamentada, seja aplaudida por todos. De todas as receitas, a que mais nos apetece é o Bacalhau à Caçadora. Um sugestão que, embebida no espírito da aventura e do azeite, termina na santa beatitude e no prazer de viver. Tal prato, que leva a assinatura de |
minha mãe, merece ser trancado a sete chaves na grata gaveta da memória, e não ser esquecido. Quando me pedem esta receita, recuo atemorizada. E não movida pelo mesquinho impulso de negar aos demais esta maravilha. Emudeço pelo temor de falhar, de não fazer jus à perfeição que sua autora, levada pelo amor aos convidados que lhe batem à porta, empresta à receita. Contudo, sob o estímulo dos amigos, sugiro que usem uma posta elevada, de fibra suave, e que a dessalguem com cautela ao renovar-lhe a água. Logo podem desfazer as postas sem pulverizá-las. Em seguida, as batatas, de igual tamanho, são fatiadas em sentido longitudinal. E para logo atender aos reclamos do coracão, ansioso por tal iguaria, empilhem no fundo da panela sucessivas camadas de bacalhau, de batata, de pimentão vermelho picado, e nunca de outra cor, enquanto as passas de Corinto são repartidas pela panela. Quase a terminar, borrifar ligeiramente os ingredientes acomodados com a água e a páprica doce misturados. Quanto ao azeite, há que exagerar cobrindo todas as camadas com ele. Recomenda-se fogo brando para não apressar o que merece lenta cocção. E quando esteja enfim pronto, melhor servi-lo com brócolis cozidos, passados no azeite e no alho socado. O único trabalho depois é saboreá-lo com os olhos ligeiramente cerrados e as pupilas dilatadas, atentas, apaixonadas". Artigo de Nélida Piñon, publicado em sua coluna no Jornal O Dia, de 26/09/96. |
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